segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A morte de um herói discreto

Em fevereiro de 1958, graças ao livro La Question, de Henri Alleg, a França descobriu que seu Exército torturava na Argélia, como os nazistas da Gestapo tinham torturado os resistentes franceses. Imediatamente, o jornalista comunista nascido em Londres sob o nome de Harry Salem, filho de judeus russo-poloneses, se transformou num ícone da luta anticolonial, em plena guerra da Argélia.

Antes, alguns intelectuais haviam escrito artigos na imprensa mas naquele livro, um homem torturado dava seu testemunho. O diretor do jornal Alger Républicain – militante da luta anticolonialista, sequestrado e preso no ano anterior – confirmava as suspeitas num relato que se transformou imediatamente num best-seller. A partir da segunda edição, o livro passou a ter um posfácio de Jean-Paul Sartre, no qual o filósofo dizia: “Henri Alleg pagou o mais elevado preço para ter o direito de continuar um homem”.
Dia 17 deste calorento mês de julho, Henri Alleg faleceu em Paris, aos 91 anos, vítima de um AVC. Os principais jornais franceses noticiaram sua morte com espaço dedicado somente aos grandes personagens. O Le Monde deu uma página inteira, Libération, duas, e o comunista L’Humanité, do qual Alleg foi diretor, deu a notícia na capa, ressaltando os combates do jornalista e escritor contra o colonialismo, a opressão e todo tipo de racismo.
O presidente François Hollande louvou “o anticolonialista ardente cujo livro alertou o país sobre a realidade da tortura na Argélia”.
O secretário nacional do Partido Comunista Francês, Pierre Laurent, escreveu que o nome de Henri Alleg “permanecerá para sempre sinônimo de verdade, de coragem, de justiça”.
O diretor do jornal L’Humanité, Patric Le Hyaric, escreveu :
“A melhor homenagem que o Estado francês poderia fazer a Henri Alleg seria, enfim, reconhecer oficialmente a tortura na Argélia, assim como os crimes de guerra.”
Outra articulista, Rosa Moussaoui ressaltou que Alleg combateu “até o fim, sem cessar, a direita francesa sempre disposta a exaltar os ‘aspectos positivos’ da colonização”. Ela se referia ao longo debate durante o governo de Nicolas Sarkozy que, tentando reabilitar o período colonial, se pôs a apontar “aspectos positivos” na colonização francesa.
O livro
Quando foi proibido na França, três meses depois de ser lançado, o livro La Question já era um best-seller, com 65 mil exemplares vendidos. O governo do general Charles De Gaulle, tendo o escritor André Malraux como ministro da Cultura, não sabia ainda como iria acabar a guerra que, aliás, não era chamada de guerra pela França, mas “les événements d’Algérie” (os acontecimentos da Argélia). A expressão guerra da Argélia só foi imposta pelos historiadores muito depois da independência da antiga colônia.
A partir da proibição, o livro passou a ser impresso na Suíça e depois saiu em diversos países. Na França, o texto de Alleg passou a ser distribuído clandestinamente por uma rede de militantes católicos, socialistas e comunistas. Antes do livro, a revista católica Esprit havia denunciado a tortura na Argélia, mas Alleg veio trazer à opinião pública um texto-testemunho de grande qualidade literária. Nele não há psicologia ou julgamento moral – o texto é límpido, seco e objetivo.
O relato de Alleg tinha deixado a prisão em folhas soltas, levadas por seu advogado, burlando o controle dos torturadores. La question foi editado por Jérôme Lindon nas Editions de Minuit, num clima de debate passional entre os anti e os pró-colonização. O livro despertou a consciência de toda uma geração que descobriu horrorizada a tortura exercida pelos paraquedistas franceses em nome do combate à “subversão” da Frente de Libertação Nacional, que lutava pela independência da Argélia.
Em 1960, Alleg foi condenado a 10 anos de trabalhos forçados. No ano seguinte, fugiu da prisão indo se refugiar num país do Leste europeu. Escreveu diversos livros e dedicou toda sua vida ao jornalismo, à causa comunista e ao combate anticolonialista.
A notícia da morte de um herói discreto me transportou ao mês de dezembro de 2011, quando fui à sua casa na banlieue parisiense para uma entrevista em torno do seu livro e de sua experiência de resistente à guerra colonial na Argélia. Ele será um personagem do livro que estou escrevendo sobre como os militares franceses na Argélia exportaram técnicas de tortura e de controle das populações civis através do general Paul Aussaresses, que viveu no Brasil por quase três anos como adido militar da França.
Apesar da idade avançada, Alleg tinha a memória intacta e a inteligência preservada pelo tempo. E ao contar sua prisão, tortura e engajamento, seus olhos brilhavam cheios de vida e de generosidade

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