segunda-feira, 1 de abril de 2013

Mulheres integraram ‘grupo de fogo’ da luta armada durante a ditadura militar


Mulheres são 28% dos 179 desaparecidos listados pela Comissão da Verdade de São Paulo; elas participaram de ações de risco que exigiam sangue frio no combate ao regime

Vasconcelo Quadros , iG São Paulo | 01/04/2013 11:00:00 - Atualizada às 01/04/2013 14:12:52
Uma nova frente de investigação das comissões empenhadas na reconstituição dos anos de chumbo está resgatando o papel das mulheres na luta armada e na resistência à ditadura militar. O que vem sendo revelado é bem diferente das versões historicamente difundidas pelos órgãos de repressão. Com 50 rostos e perfis a assombrar os remanescentes do regime, elas representam 28% dos 179 desaparecidos políticos listados pela Comissão da Verdade paulista e, entre todos os mortos e desaparecidos no período, são 11%. Militaram nas principais organizações (PC do B, ALN, VPR, Val-Palmares e MRT) e estiveram lado a lado com os homens em todo o movimento que marcou o período mais duro da resistência, entre 1968 e 1973. Elas são também responsáveis por lances que intrigaram a polícia da ditadura: a presença de uma falsa loura nas ações armadas.
 Reprodução
Carta de militar extorquindo dinheiro e chantageando família de militante
A historiadora Maria Cláudia Badan Ribeiro, em pesquisa que amparou seu doutorado em história social na USP, jogou luzes na rede feminina que amparou a maior organização armada do período, a Ação Libertadora Nacional (ALN). Suas conclusões mostram que as mulheres cuidavam da organização de encontros clandestinos, levantavam informações para o planejamento de ações armadas, arranjavam documentos falsos, escondiam em “aparelhos” seguros os mais procurados, articulavam apoio internacional, editavam publicações (O Guerrilheiro, Ação e Venceremos) e participaram, sim, de ações armadas da pesada.
Dos 80 processos que analisou nos quatros anos e meio de pesquisa, Maria Cláudia listou 330 mulheres que atuaram na ALN, 261 delas, conforme registra o Arquivo Edgard Leuenroth, militantes presas, processadas, condenadas ou apontadas como suspeitas. Das 172 que foram julgadas e condenadas, 116 eram de São Paulo, 17 do Rio, 12 de Goiás, 10 do Ceará, 8 de Brasília, 5 do Pará, 3 de Pernambuco e uma de Minas. Outras 89 foram investigadas como suspeitas.
No grupo de fogo
No arquivo Brasil Nunca Mais, chamou a atenção da pesquisadora a expressiva presença feminina no total de processos relacionados às organizações: 67,7 %. Maria Cláudia entrevistou 43 mulheres que estiveram na linha de frente da guerrilha urbana e descobriu que destas quase um quarto pertenceu ao Grupo Tático Armado, o famoso GTA da ALN, por onde transitaram os guerrilheiros do grupo de fogo, o setor da guerrilha que executava assaltos e ações mais fortes.
Eram atividades que exigiam sangue frio e não distinguiam homens e mulheres de riscos e responsabilidades. Uma delas, Sônia Maria Ferreira Lima, acusada de participação num assalto a banco que terminou na morte de um segurança no Rio, virou alvo de um pedido de pena de morte, mas acabou denunciada e condenada à prisão perpétua. Sônia nunca foi presa. Quando o cerco apertou, exilou-se, só retornando ao País com a Anistia.
 Arquivo pessoal
Historiadora mapeou a rede feminina que amparou a maior organização armada do período, a Ação Libertadora Nacional (ALN)
Nas ações mais pesadas da esquerda armada, há sempre a presença de mulheres. No Araguaia, por exemplo, entre os 88 guerrilheiros – 68 deles foram mortos – distribuídos pelo PC do B em três destacamentos, elas eram 19. A mais caçada foi a geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, presa numa emboscada pelo major Curió (Sebastião Rodrigues de Moura) já no final da guerrilha, executada friamente dias depois e até hoje desaparecida. Virou lenda no Araguaia.
Na área urbana, algumas chamam a atenção pela variedade e peso das ações: Jessie Jane Vieira de Sousa estava no grupo que tentou sequestrar o avião Caravelle, da companhia aérea Cruzeiro do Sul, em 1970 no Galeão. Historiadora, atualmente é diretora do Arquivo Público do Rio; outra, Ana Miranda Bursztyn, participou do assalto às Lojas Mappin, em São Paulo, em cuja ação morreu um dos seguranças. Socióloga, integra a ONG Militante Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça; e, uma terceira da ALN, Maria do Amparo Araújo, que mergulharia por quase uma década na clandestinidade e chegou a ser dada como morta pelos órgãos de repressão. Ela participou da “expropriação” da Metalúrgica Mengels, no Rio. É hoje dirigente do Grupo Tortura Nunca Mais e assessora da Secretaria de Articulação Internacional do governo de Pernambuco.
A ala feminina do GTA da ALN contou ainda com outras sete mulheres: Ana Corbisier, que atualmente é tradutora; Guiomar Silva Lopes, médica e professora, que chegou a comandar um grupamento da ALN; Ilma Horst Noronha, diretora da Fiocruz; Maria Aparecida Costa, advogada; Maria Aparecida Santos, professora; Tania Fayal, fundadora e militante histórica do PDT, que até a última quarta-feira era assessora especial do gabinete do ministro do Trabalho e Emprego; e, Moema Santiago, ex-deputada e dirigente nacional do PSDB.
A loura dos assaltos
 Reprodução
Aviso do grupo Falange Pátria Nova, uma organização de extrema direita
Elas são também responsáveis por lances que intrigaram a polícia da ditadura: a presença de uma falsa loura nas ações armadas. Há dezenas de informes nos arquivos da repressão e inúmeras citações em livros sobre a “loura dos assaltos”, personagem que atravessou os anos de chumbo como um mistério. Agora se sabe que “a loura dos assaltos”, na verdade, foram várias mulheres que militaram na esquerda armada.
A primeira surgiu em 1969. Foi Tania Fayal, na época uma jovem e bela morena de 19 anos, que usava uma peruca loura para confundir a polícia em ações de assaltos no Rio de Janeiro. Entre as primeiras está também Maria Aparecida Costa. Depois, a estratégia se proliferou no eixo Rio-São Paulo. Segundo Maria Cláudia, as louras apareceram também nas cabeças das guerrilheiras Renata Guerra (VPR), Vera Silvia Magalhães (MR-8), Ana Maria Nocinovic (ALN) e Maria do Carmo Brito (VPR), que foi comandante da hoje presidente da República, Dilma Rousseff, na primeira organização em que esta militou, a Política Operária (Polop).
“Era só um artifício. Loura era vista mais como estrangeira num Brasil predominantemente moreno. As militantes que tenho na memória eram morenas. Não havia à época os apliques que se faz hoje no cabelo. Compramos então perucas”, conta Tânia Fayal. Há poucos anos ela recusou o convite de um amigo, que queria contar sua história na luta armada pelo papel precursor das louras dos assaltos.
Sem choro ou vitimização
As ex-militantes são hoje pesquisadoras, assistentes sociais, sociólogas, jornalistas, economistas, médicas, biólogas, advogadas, economistas, funcionárias públicas ou militantes políticas, como Dilma Rousseff e a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Política para as Mulheres, companheiras de cela no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo. Lá ficaram recolhidas as condenadas que sobreviveram aos horrores da tortura, a geração de mulheres forjada nos anos de chumbo e que, sinal dos tempos, é hoje a nova fisionomia do poder.
“Precisávamos mesmo de Dilma para contar essa história. Não com pesar, mas com orgulho”, diz a historiadora Maria Cláudia ao ressaltar que as guerrilheiras sobreviventes nunca se encaixaram no papel de vítima nem de vencidas. Dilma, segundo ela, é um desses exemplos: foi perseguida, presa, torturada e deixou o cárcere de cabeça erguida, sem abrir informações que ameaçassem a vida de companheiros ou renegar as razões que a levaram a se rebelar. “São guerreiras. Aprenderam conter o choro e ir em frente”, diz a historiadora.
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 AE
A ministra Eleonora Menicucci ficou presa junto com Dilma em São Paulo durante a ditadura militar
Na sessão conjunta das Comissões da Verdade Nacional e Paulista, na última segunda-feira, a ministra Eleonora Menicucci foi escalada para homenagear Inês Etienne Romeu (VPR), também amiga de Dilma e outra militante que viveu a adrenalina dos confrontos (participou do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher) e os horrores da tortura.
Única sobrevivente da Casa da Morte, como ficou conhecido o centro de tortura clandestino de Petrópolis, região serrana do Rio, cuja existência foi ela que denunciou, com a saúde debilitada, Inês vive atualmente em Niterói. Torturada, humilhada e estuprada na prisão, é quase um milagre que tenha sobrevivido. “As mulheres precisam ser lembradas e celebradas”, pontuou a ministra ao homenagear a amiga.
Inês não só abriu a série de denúncias contra a tortura no Brasil, como a primeira militante a alertar a esquerda sobre a traição de José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo. A informação foi passada por Maria Auxiliadora Brito aos banidos que estavam no Chile, mas acabou não sendo levada a sério por dirigentes como Onofre Pinto, que depois seriam mortos em emboscadas.
As estudantes que optaram pelo enfrentamento à ditadura, lembrou a ministra Eleonora Menecucci, “trocaram sonhos e juventude pela luta”. Ela explica, no entanto, que repetiriam tudo de novo. “Valeu a pena”, diz, acrescentando uma sugestão: “Sem a redescoberta do papel da mulher não se recupera a memória”.

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