Documentos revelam o ‘Dr. Geraldo’, que fez a ligação dos empresários paulistas com o Dops durante sete anos
“Dr. Geraldo”, escreveu o funcionário no livro de portaria. “Cargo: Fiesp”, completou. Eram 18h30m daquela segunda-feira, 19 de abril de 1971, quando Geraldo Resende de Mattos, o “Dr. Geraldo” da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, avançou pelo corredor central do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). No prédio ícone da arquitetura ferroviária paulistana funcionava uma falange policial do mecanismo de repressão política operado pelo II Exército. Quatro meses antes, o general-comandante Humberto de Souza Mello dera sinal verde à matança de adversários do regime. E confirmou a ordem ao chefe do seu Estado-Maior.
O tratamento de “doutor” na delegacia era reverência policial à organização dos industriais. Os livros do Dops, há pouco revelados pelo Arquivo Público, indicam que a conexão entre o empresariado paulista e a polícia política do regime militar foi muito mais extensa do que até então se presumia.
Mattos frequentava os andares do Dops onde funcionavam as seções de Política e de Informações, três a quatro vezes por semana no final do expediente. Essa foi sua rotina durante sete anos, de 1971 a 1978. Às vezes, passava mais tempo lá do que na federação. Tinha 52 anos e estava há 28 no Serviço Social da Indústria (Sesi), vinculado à Fiesp. Entrou como “auxiliar” e cresceu a partir de uma relação de confiança com o industrial Nadir Dias de Figueiredo, um dos fundadores dessas entidades.
Um homem do poder
Figueiredo era figura ímpar no empresariado paulista. Emergiu da Depressão de 1929 como proprietário de fábricas de vidros, lâmpadas e aparelhos de iluminação na região metropolitana de São Paulo. Com o irmão Morvan, ministro do Trabalho no governo Dutra (1946-1951), ajudara o engenheiro e senador Roberto Simonsen a erguer o mais influente condomínio sindical do patronato brasileiro (Fiesp/Ciesp/Sesi/Senai). Com a morte de ambos, nos anos 50, Figueiredo desfrutou como ninguém do controle político dessas entidades.
Dono de um sorriso enigmático, fala mansa e sempre a bordo de um terno escuro, elegeu todos os presidentes da Fiesp durante três décadas, até 1980. Manejava com habilidade um colégio eleitoral de 94 eleitores, onde o voto dos antigos sindicatos de cordoalha e de chapéus para senhoras valia tanto quanto o das inovadoras indústrias automobilística e o da eletrônica.
Jardineiro da dissimulação, distanciava-se com polidez de jornalistas e pretensos biógrafos esgrimindo uma bem humorada recusa: “A metade do que eu teria para contar envolve outras pessoas, por isso é assunto confidencial. Sobre a outra metade, bem… iriam me chamar de mentiroso”. Nunca presidiu a federação. Escolhia presidentes e alocava um de seus filhos na posição de vice. Era o “emérito”, derrotado na revolução paulista de 1932, contra Getúlio Vargas, e vitorioso no golpe de 1964 contra João Goulart.
Naquela segunda-feira 19 de abril de 1971, foi atípica a visita do “Dr. Geraldo” da Fiesp ao Dops. Durou dez minutos. Saiu às 18h40m da delegacia onde imperava Sérgio Paranhos Fleury, ícone da corrupção e da violência policial, a quem o comando militar dera proeminência na máquina de repressão política. Fleury estava nas ruas, caçando terroristas que, quatro dias antes, assassinaram um diretor do Centro das Indústrias (Ciesp). Antes da semana acabar, comandaria a aniquilação do Movimento Revolucionário Tiradentes, integrante do consórcio guerrilheiro montado para execução do empresário Albert Henning Boilesen.
O dinamarquês Boilesen, de 54 anos, havia sido eleito na Fiesp/Ciesp com o aval de Nadir Figueiredo depois de chegar à direção do grupo Ultra. Eram vizinhos no charmoso bairro Jardim América. Na manhã de quinta-feira, 15 de abril, foi emboscado ao sair de casa. Metralhado, morreu na sarjeta.
Ativo colaborador do Departamento de Operações Internas (DOI) do II Exército, Boilesen se destacava nas reuniões da federação pela veemência na defesa de ajuda financeira e logística ao aparato de repressão política. Dias antes de ser assassinado propôs a criação de um braço armado, civil, em apoio ao regime militar. A Associação dos Combatentes Brasileiros não saiu do papel, mas o caixão do seu idealizador baixou ao túmulo escoltado por dois pelotões do Exército e na presença do comandante da Região Militar, general Dale Coutinho.
O empresário Boilesen e o auxiliar Mattos faziam parte de uma engrenagem civil-militar que reconhecia a legitimidade do “movimento revolucionário no uso de meios para atingir plenamente seus objetivos”, na definição de Theobaldo De Nigris, presidente da Fiesp com sucessivos mandatos garantidos por Nadir Figueiredo até 1980. O empresariado somava-se à luta contra as “falanges da subversão e do genocídio” — dizia a federação em manifestos.
Não há dados precisos, mas sabe-se que foi expressivo o fluxo de dinheiro para a repressão, a partir de coletas na Fiesp e em reuniões promovidas por Gastão de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), João Batista Leopoldo Figueiredo (Itaú e Scania), Paulo Ayres Filho (Pinheiros Produtos Farmacêuticos), e o advogado Paulo Sawaia, entre outros. Empresas como Ultragaz, Ford, Volkswagen, Chrysler e Supergel auxiliaram também na infraestrutura, fornecendo carros blindados, caminhões e até refeições pré-cozidas.
Foram criados departamentos de espionagem de empregados recrutando agentes civis e militares. Nos arquivos do Dops há uma profusão de registros, listas e fichas individuais.
As relações entre empresários e chefes militares se solidificaram durante a conspiração contra Goulart. Cristalizaram-se na Operação Bandeirantes, em 1969, quando as atividades repressivas foram centralizadas no II Exército. O êxito da experiência da Oban levou à instituição do DOI-Codi na estrutura militar oito meses depois. A autonomia e o vínculo direto da máquina de repressão com o ministro do Exército, em Brasília, produziu a subversão da hierarquia na caserna. A partir daí, a anarquia, a tortura e a matança se tornaram institucionais.
Em São Paulo, generais e empresários esmeravam-se na lapidação de seu relacionamento com reuniões e solenidades cada vez mais frequentes. Na terça-feira 9 de dezembro de 1970, por exemplo, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Ernani Ayrosa, abriu o quartel para homenagear alguns dos seus mais destacados colaboradores.
Convidou Henning Boilesen e Pery Igel (Ultra), Sebastião Camargo (Camargo Corrêa), Jorge Fragoso (Alcan), Adolpho da Silva Gordo (Banco Português), Oswaldo Ballarin (Nestlé), José Clibas de Oliveira (Chocolates Falchi), Walter Bellian (Antarctica), Ítalo Francisco Taricco (Moinho Santista) e Paulo Ayres Filho (Pinheiros Farmacêutica), entre outros. Ayres Filho levou para casa uma insígnia do comando gravada em metal. Agradeceu em carta, encontrada pela historiadora Martina Spohr. Nela dizia compreender o gesto “mais como um prêmio pela minha lealdade perene aos ideais cristãos e inabalável fé na Liberdade, do que por qualquer contribuição pessoal que tenha prestado às causas e operações no presente”.
Naquele dezembro, o “Dr. Geraldo” também foi premiado: seu chefe, Nadir Figueiredo, colocou-o no conselho fiscal de uma de suas empresas.
Quatro anos depois, com a guerrilha urbana exterminada e a rural asfixiada no mato do Araguaia, o general-presidente Ernesto Geisel anunciou o retorno à democracia. Conservadores como Figueiredo sentiram-se desnorteados. O líder industrial decidiu ir à luta. E levou a Fiesp a uma campanha em aliança com grupos ultrarradicais, como o medievalista Tradição, Família e Propriedade (TFP), patrocinado pelo construtor Adolpho Lindenberg.
Figueiredo e Lindenberg coordenaram uma espécie de levante contra a abertura política, em 1978. Tentaram cooptar o general João Batista Figueiredo, já escolhido pelo presidente Geisel como seu sucessor. Levaram-lhe um manifesto empresarial a favor do regime. Perderam. Prevaleceu a volta aos quartéis.
Sem bússola, Nadir Figueiredo viu seu poder declinar na Fiesp. Saiu de cena em 1980, quando pela primeira vez saboreou a derrota numa eleição da federação. “Dr. Geraldo” acabou demitido pela nova diretoria. E a TFP acabou estilhaçada na luta interna.
Figueiredo só percebeu ter sido atropelado pela História pouco antes de morrer, em 1983. Foi quando viu na televisão um mineiro de sua cidade natal, São João Del Rey, liderando manifestações de rua por eleições diretas para presidente. Era Tancredo Neves.
Para a Fiesp, essa é uma página virada da sua história. “É importante lembrar que a atuação tem se pautado pela defesa da democracia e do estado de direito”, ressalta a atual direção em nota oficial. E acrescenta: “Eventos do passado que contrariem esses princípios podem e devem ser apurados”.
FONTE: Jornal O GLOBO
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