Iuri Müller e Samir Oliveira
“Eles não compreendem, Suzana, que nós somos um momento na luta que o Homem vem enfrentando através da História, cada vez mais conscientemente, pela felicidade. Não entendem que nós buscamos, em última análise, as condições ideais para o amor”.
Há quarenta e um anos, no início de setembro de 1972, Luiz Eurico Tejera Lisbôa deixou de se comunicar com a mulher, Suzana, e com a organização na qual militava, a ALN. Ico, como era conhecido em Porto Alegre, havia deixado o Rio Grande do Sul para se juntar a companheiros da guerrilha em São Paulo. Para muitos dos militantes, a resistência já era insustentável, com sequestros, sessões de tortura e assassinatos ocorrendo por todo o país. A ditadura militar fechava o cerco contra a luta armada. Para Luiz Eurico, setembro foi o início do seu definitivo silêncio.
Não houve qualquer informação oficial sobre o paradeiro do militante ao longo de sete anos. Alguns boatos indicavam que ele teria sido visto no Uruguai, onde poderia ter buscado exílio. Mas as suas cartas – sempre apaixonadas, cheias de vida – não chegavam mais a Porto Alegre, onde Suzana Lisbôa vivia na época. A Aliança Libertadora Nacional tampouco tinha notícias da sua situação. Apenas em 1979, quando Suzana percorreu bairros e ruas de São Paulo à procura do corpo do marido, o mistério sobre o desaparecimento de Ico teve fim.
Suzana passou por cemitérios onde eram enterrados indigentes e buscou pistas nas descobertas de outros desaparecidos políticos que acabaram registrados nos túmulos com os seus nomes de guerra. No de Perus, encontrou o registro de um homem chamado Nélson Bueno, nome utilizado por Ico na guerrilha. Ele teria morrido no dia dois ou três de setembro de 1972, e viveria numa pensão localizada no bairro da Liberdade. A ocorrência apontava para o suicídio; hipótese que peritos legistas acabaram por desmentir muito tempo depois.
Luiz Eurico nasceu em Porto União, Santa Catarina, no ano de 1948. Já no Rio Grande do Sul, viveu em Caxias do Sul, Santa Maria e Porto Alegre. Era o mais velho dos sete irmãos da família Lisbôa, e desde a adolescência mostrava traços de um caráter combativo. Tinha quinze anos naquele abril de 1964 quando os militares depuseram João Goulart da presidência da República, idade suficiente para redigir um manifesto denunciando o golpe e distribuí-lo pelas cercanias da escola onde estudava.
Como militante, passou pelo movimento estudantil secundarista na União Gaúcha dos Estudantes Secundários (UGES) já em tempos de ditadura. Foi dirigente, teve o nome guardado pela repressão e acabou preso pelo DOPS do Rio Grande do Sul por mais de uma vez. Após integrar o Partido Comunista, na luta armada juntou-se às fileiras das guerrilhas VAR-Palmares e Aliança Libertadora Nacional (ALN). Mais além da política, quem o conheceu disse que enchia a casa e as conversas de poesia: escrevia versos sobre o amor, a saudade, o sonho do socialismo em terras brasileiras, a chegada de um novo tempo.
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“Eu quero
Você quer
Vamos amar então.”
Você quer
Vamos amar então.”
Em 1993, o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul publicou uma antologia de poemas, cartas e textos políticos de Luiz Eurico Lisbôa. A organização do livro mostra o encantamento do “poeta guerrilheiro”, que citava Luther King, Bolívar e San Martín, mas recordava, mais do que ninguém, Suzana. “Nos conhecemos dentro do movimento estudantil. Eu, em 1967, fui estudar no Julinho (Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre), começando o segundo grau, onde ele estudava”.
Suzana e Luiz Eurico tinham respectivamente 20 e 24 anos no ano de 1972, quando ele desaparece em São Paulo. Haviam se casado há pouco tempo. A breve época do amor rendeu, no entanto, intensa convivência, amplificada pelos riscos que a luta armada inevitavelmente oferecia aos militantes. Em um poema sem título ou data, que deve ser posterior a 1968, Luiz Eurico escreveu: “Suzana / esta noite / teu nome é um sussurro / de estrelas aos meus ouvidos / um rumorejo de folhas secas / lamento saudoso / nas águas negras do Araguaia”.
Segundo o músico Nei Lisboa, o mais novo dos sete irmãos da família da qual Ico era o primogênito, o guerrilheiro trazia para dentro de casa as inspirações artísticas e políticas. “Lá em casa, aconteciam muitas vezes algumas dessas reuniões do movimento estudantil, desses encontros. Minhas irmãs também militaram por um tempo no movimento secundarista, muito forte na época, e por aí fui me tornando um guri que respondia, quando me perguntavam, que ia ser guerrilheiro quando crescesse. Era uma coisa que o Ico me ensinou, e que não era solta no ar”.
O discurso de Luiz Eurico passava pela opressão do capitalismo do Norte sobre os países do terceiro mundo, a luta dos negros nos Estados Unidos, a luta pela libertação na América Latina, as formas de resistências ao regime militar que iniciara no Brasil em 1964. Assim como, em meio à doutrinação política, caminhava pela casa recitando poemas de amor. “Ele falava sobre a necessidade de uma justiça social e de uma revolução que estaria por vir, muito próxima, logo ali na frente. Vivíamos com este sonho, com esta utopia que o Ico comentava na nossa casa”, recorda Nei, que teve a convivência com o irmão interrompida ainda na adolescência.
Nei afirma que encontrou Luiz Eurico mesmo após o irmão passar à clandestinidade – opção necessária para a época em que a vida normal em Porto Alegre passou a ser um devaneio. Eram visitas rápidas, por vezes de menos de meia-hora, na qual se falava rapidamente sobre a vida de cada um. “Eu era quase sempre o último a saber, por ser o irmão mais novo. Era quase assim: veste o casaco e vamos lá”, conta Nei. O último encontro ocorreu no inverno de 1972, ano da sua morte, em Pinhal, praia do litoral gaúcho. Isso se a memória e a distância não tiver embaralhado as recordações, como reconhece o próprio artista.
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“Foi um rebuliço lá em casa
Manifestos, passeatas
Festivais de minissaias
Meu irmão limpando a arma
Meu irmão,
E a revolução?”
Manifestos, passeatas
Festivais de minissaias
Meu irmão limpando a arma
Meu irmão,
E a revolução?”
De 1972 a 1979, longa espera de sete anos, Nei, Suzana, amigos e familiares aguardaram por um desfecho relativo ao seu desaparecimento. Para muitos, já havia a certeza de que Luiz Eurico havia sido assassinado ou morto em combate, mas faltava encontrar o corpo. “Eu acho que parte da tristeza pode ser elaborada, encontra o seu lugar, quando existe um corpo. É muito duro não ter um corpo. Esta técnica dos desaparecimentos não acontece por acaso, é uma prática orquestrada pelas ditaduras, que atinge a todos os envolvidos e a disposição de quem está por perto”, conta Nei Lisboa.
Este tempo de espera, que compreende o período dos 13 aos 20 anos de Nei, é também a época em que o artista se aproxima da música e das composições – com clara influência do irmão mais velho. “A minha música tem muito a ver com o desejo de dizer em palavras para o maior número de pessoas possíveis. E, quero crer, sem arvorar grande militância, ter questionado algumas coisas. Parte dela é romântica, como também eram os poemas dele, mas também há denúncia, algum questionamento. Isso tudo tem uma nascente”, recorda. Para Suzana Lisbôa, a confirmação da morte, por mais dolorosa que possa ser, é necessária para que se possa seguir adiante.
“Para mim, quando ficou provada a morte dele, foi o começo e o fim de um caminho. Do ponto de vista da emoção, eu tinha certeza que ele estava morto, mas é diferente quando descobri, quando achei um inquérito com o nome falso dele. Essa certeza íntima é fundamental. Já é difícil conviver com a morte, com a quase morte, então, é insuportável”, conta Suzana. O que permanece indefinido, no entanto, são os contornos do seu assassinato – se de fato ocorreu na pensão do bairro da Liberdade ou se aquela foi uma cena montada, como tantas outras que o governo militar organizou na década de 1970.
Suzana Lisbôa atua há décadas na busca por respostas sobre os assassinatos protagonizados pela ditadura militar. Esteve ao lado do Comitê Brasileiro pela Anistia, na Comissão de Mortos e Desaparecidos, e agora acompanha de perto a Comissão Nacional da Verdade (CNV). “Queremos que ela nos dê uma resposta sobre cada um dos mais de quatrocentos mortos e desaparecidos. Acho que até aqui ela não avançou neste sentido, e foi para isso que ela foi criada. Penso que a presidência da República está muito ausente do assunto”, analisa Suzana.
Nei Lisboa considera que seria “importante e duro” saber como Luiz Eurico morreu, e quem foram os responsáveis pelo seu assassinato aos 24 anos. “Quando dizem ‘não vamos remexer as feridas do passado’, estão falando de que feridas? Nós é que temos feridas, e queremos saber. Mas o caso específico do Luiz Eurico não é o mais importante. Não é um gesto pessoalizado, quero crer que não seja. Em nome dele, quero saber o nome de todos”, explica Nei, que completa: “a nossa ditadura conseguiu deixar como legado um silêncio primoroso”.
Em setembro de 1972, a organização palestina “Setembro Negro” sequestrava atletas israelenses nos Jogos Olímpicos, no episódio que seria conhecido como o “Massacre de Munique”. Em Montevidéu, muito longe dali, a polícia uruguaia recapturava com violência o líder tupamaro Raúl Sendic, um ano antes do golpe de Estado. Eram tempos de conflito armado, de enfrentamentos ainda polarizados e em âmbito internacional. Em São Paulo, também em setembro, numa ação que não se tornou notícia nos jornais, a ditadura brasileira assassinava Luiz Eurico Tejera Lisbôa – e sabe-se lá quantos mais – no bairro da Liberdade.
¹ Esta reportagem se utilizou de informações da investigação do jornalista Ricardo Carvalho, publicada na revista Istoé em 29 de agosto de 1979.
² O primeiro trecho em itálico é um fragmento da carta que Luiz Eurico enviou a Suzana em 5 de julho de 1968. Os versos que abrem a segunda parte da reportagem correspondem ao poema “Simplicidade”, escrito por Luiz Eurico em Santa Maria, em janeiro de 1967. O último fragmento, da música “E a revolução?” é de autoria de Nei Lisboa.
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